Era nossa primeira vez em apartamento. Marcelo até já tinha morado, mas foi em SP, há muito tempo, por pouco tempo.
A gente tava curtindo muito a novidade.
Era uma resposta de oração que pensávamos que não chegaria mais. E tava tudo tão certinho, tão casadinho.
Ai, tão gostoso!
Móveis novinhos. Vizinhos. Eu nunca tive vizinhos. Tive a Dona Rosa lá na Casinha Linda, mas eu nem lembro mais como é o rosto dela. Pucevê que a gente não devia se falar muito.
Na Saldanha eu tinha o seo Djalma. Mas ele era mais parça do meu pai, e eu acho que nunca conversei com ele. É, nunca mesmo. E vizinho pra quem você não pode pedir um ovo não é vizinho, né... é malemá o hómequemoralánafrêindicasa.
Enfim. Eu tinha uma vista linda. Eu amo a minha vista.
Um porteiro vigiando tudo.
Um elevador pra chamar de meu.
Lazer.
Tudo de aluguel. Mas tinha. Tenho. Tava feliz. Tô. E muito.
Na minha primeira entrada triunfal pelo portão da frente do prédio, eu fui surpreendida por um caminho de lavandas que ligava a portaria à entrada da minha torre.
Tão lindo!
Tão cheiroso!
Tão especial aquilo!
A gente já tava com uma sensação tão boa daquela novidade toda, e o caminhinho de lavandas era a cereja do bolo. Acho até que, a partir de agora, não vou mais chamar as coisas especiais de 'cereja do bolo'. Vou chamá-las de 'caminhinho de lavanda'. Dã. Que ruim! Desculpa. Pode ler até o final, não vou mais fazer isso. Prometo.
Enfim.
O caminhinho de lavanda era, pra mim, uma forma de boas vindas. Sabe qdo você vai num hotel bacana ('bacana' é uma gíria que, quando usada por alguém que tem mais de 40, quer dizer 'coisa de rico') e a arrumação do quarto tem flores com um bilhetinho de Welcome?
Tipo isso.
Eu passava por elas e aquele perfume me hipnotizava. Parecia que sempre que eu passava por ali um ventinho extra fazia aquele aroma chegar mais forte pra mim. Que experiência incrível de acolhida. Eu achava que era um mimo do meu Pai Celestial pra mim.
Alguém duvida que era?
E era tudo muito gostoso, porque estava lastreado por aquela sensação maravilhosaaaaa de 'oração respondida'. Oração respondida traz silêncio interior. Que delicia é o silêncio interior...
É ele que a gente quer sempre. E que às vezes é tão raro.
É 'silêncio interior' o que a gente sente quando ora. Quando se conecta com o sobrenatural. Nada mais me dá tanto silêncio interior.
Uma boa corrida me acalma sim. Fazer as unhas do pé também. Conversar com meu pai (o terreno). Ligar pro meu marido no meio do dia. Saber que meu filho está em casa (ou que ele tirou mais que 8 na prova). Perder 1kg. Comer amora do pé. Bife da Tchivone. Estacionamento vazio no shopping. Quando a Netflix abre sem pedir login e senha. Bateria cheia no celular. Fazer gente velha rir. Acordar achando que são 6AM quando ainda são 4AM. Achar 20tão no bolso. Cantar. Todas essas coisas me enchem a alma e me acalmam.
Mas 'silêncio interior' é um step além. Só experiências sobrenaturais me levam lá.
Então, eu passava no caminhinho e tinha silêncio interior. Era demais aquilo!
29 dias. Foi o tempo que durou minha experiência diária de silêncio interior.
O inesperado ruiu tudo! Uma notícia estranha nos roubou o chão e tudo perdeu a graça.
De repente a gente quase não tinha pra onde ir por um problema jurídico e burocrático que a gente não causou, e a alegria fez as malas e foi embora.
(Não é que não quero dar detalhes sobre o problema. Eu posso, mas o texto vai ficar cansativo com tanta informação. Vai por mim: não precisa. Mas se você quiser muito saber, me pergunte e eu te conto. Assim só você se enche com informações e a gente não enche todo mundo com isso. Haha! Você vai ver que eu tinha razão).
Marcelo e eu ficávamos caçando as migalhas daqueles dias felizes. A impressão é de que a gente nem tinha vivido aquilo. O cinza veio tão forte que a gente não lembrava mais como era a cor das coisas.
Quantas lágrimas no tapete da nossa sala.
Aquela vista linda da varanda continuava linda. Mas tinha um Q de triste. Porque a gente só olhava pr'aquele horizonte lindo pra clamar por socorro.
Curiosamente, depois de alguns dias trocando o caminho da Portaria, eu desci e... adivinha!! Não, adivinha!!! As lavandas haviam secado!!! Todas!!! Uma por uma!!!
Não tinham mais cor de lavanda. Estavam ocre. Já viu cor mais triste que o ocre? Pesquisa 'ocre' no Google. É um bege tentando virar cor.
As folhas também estavam morrendo. E tinha só uma lembrancinha de perfume. Lembrancinha. inha. inha.
Bati na Portaria e quis reclamar.
"Hey! Vocês esqueceram de molhar as lavandas?! Que aconteceu, gente?! 6 tão doido?! 6 mataro as lavanda, mano?!"
Me explicaram que elas seriam arrancadas nos próximos dias porque estavam mortas desde a raiz.
Nem discuti. Era a fotografia da vida real. Morta desde a raiz era como eu me sentia mesmo. Zero a zero.
A pior parte não era não saber pra onde eu iria com minha família. Não era saber como reparar aquele dano que nós não causamos, mas pelo qual provavelmente teríamos de pagar.
A dor era pensar num Deus tão ocupado que havia se esquecido de mim.
A dor era pensar não ter ouvido direito a direção que Ele havia dado pra nós. Era ter errado o alvo. Era estarmos sozinhos.
Orávamos, mas Ele não nos respondia.
Clamávamos, mas o socorro não chegava.
Eu sabia que Deus estava lá. Que Ele sabia e via. Que ouvia. Mas era a dor de, por alguma razão, o silêncio interior estar só do lado de fora. Ele não falava. Não nos respondia.
E eu chorava a dor do meu Pai não me amar e não se importar comigo.
Chorava a dor de Ele ter se apartado de mim.
Chorava. Chorava. Sem lavanda. E com muito, muito barulho na alma. De ensurdecer.
Arrancaram as lavandas. Era verdade.
Elas tinham morrido. E aquela terra ficou lá, como uma cova. Por vários e vários dias.
Eu não ouvia mas não parei de clamar.
Tinha um ruído, um movimento. Eu não via, mas eu sabia que tinha. Eu ficava entre o saber que tinha e o jurar que podia ter ouvido um sussurro vindo do alto. Na dúvida, eu seguia adiante. E adiante. E aquela cova, ao invés de ter cara de morte, parecia exalar cheiro de terra nova.
Numa das nossas orações, meu marido compartilhou comigo que estava contente com aquela experiência. Eu o vi sereno e forte, e ele não parecia estar falando aquilo pra me acalmar. Ele estava mesmo feliz. Ele se prostrava de um jeito diferente. Parecia livre. Parecia leve.
Num primeiro momento me senti sozinha. Sabe qdo há uma lista de espera, o nome do seu parceiro é chamado e o seu não? Senti assim.
Mas garrei na perna dele, porque é aquela, né... Se tu vai ficar legal, me leva, né... Legal por legal eu também sou, pow! Tu num me deixa sozinha aqui não. Deixa eu tocar nas vestes de Jesus também! Ah, como eu queria sarar...
Então nós resolvemos respirar. Olhar em redor, e tentar fazer o que é pra fazer qdo a alegria vai embora: cantar pro luto passar. O luto é bom é necessário. Mas se apegar a ele é contra nossa natureza de adoração.
Então... bora!
Tínhamos de fazer alguns cortes no orçamento, porque não sabíamos quando e como aquilo acabaria.
Tivemos de dar tchau pra Gi, nossa ajudante querida.
Cancelamos as aulas de violao.
Encerramos o contrato com a escola de ingles.
E eu tive de colocar 100% do meu coração na minha casa. Eu cozinhava. Meu marido cuidava das nossas roupas. Nós dois limpávamos. E nunca nosso papo esteve tão em dia!
Eles se sentavam na varanda, pai e filho, pra tocar violão juntos. Agora o professor era o pai. E tenho fotos sem fim na memória, porque eu não cansava de olhar pra aquilo.
As aulas de inglês ficaram comigo. E eu não tinha ideia de quão grande era o vocabulário estrangeiro daquele menino que tinha saído da minha barriga! Que delicia! A varanda voltou a ter graca, muita graca. Era ali que a gente ouvia musicas em inglês, tentando identificar a letra, fazíamos palavras cruzadas e conversávamos muito.
Minha cada voltou à cor. Eu ficava pensando que aquele problema não era tão importante. Porque eu pude ver o que realmente era meu. E que o que realmente era meu, era antes do meu Pai.
E que nada tinha a ver com Ele não se importar. Tinha a ver com entender que aqueles meus dias de angústia eram part de um todo maior. Eu não via. Ele sim. Eu não sabia. Ele sim. Eu tava triste. Ele feliz em me tratar. Me provar. Como o ourives faz com seu ouro mais precioso. Porque eu, a despeito de não valer nada, sou o ouro mais precioso do meu Pai.
Aí um dia a resposta chegou. Isso, rápido assim. Um dia o silêncio de fora migrou pra dentro. E havia música no ar.
O problema foi embora. Na mesma velocidade com que chegou. Dissipou que nem nuvem. E quando a escuridão virou luz, eu vi que tava tudo ali, bem diante de nós.
Nós, sempre tão seguros, vimos nossos medos virarem monstros de verdade. De
pele, osso e toga preta. A escassez chegou com cara de quem ia ficar e roubar nosso sol. Mas aí, quando o muro ruiu, o medo do futuro foi embora com ele. Deus nunca saiu de lá.
A fumaça virou brisa fresca, e pude ver as mãos de amor do meu Pai estendida sobre nós. Ouvi a doce voz Dele no meu silêncio interior. Quanta saudade eu tava daquele amor vivo que nunca me deixou. Mas havia raízes mortas que precisavam ser arrancadas pra que houvesse vida nova dentro de nós.
Nós não entenderíamos de outro jeito.
Não renasceríamos de outro jeito.
Pagaríamos o preço de sermos lavanda ocre pra sempre. Sem morte. Sem vida. Sem recomeços. Os mesmos medos. A mesma certeza na força do nosso braço.
Continuaríamos caminhando com a enxada em riste, pouco importando se o maná viria do céu. Se não viesse, eu compraria. Só que mana comprado é melancia transgênica. Se você já comeu sabe do que eu tô falando. Não presta nem pra ter nutrientes. Que dirá pra ter sabor.
Desci no próximo sábado depois das boas novas. E o jardim novo tava pronto. Lindo. Leve. Colorido. Cada florzinha um lembrete: "Eu te amo, filha!". "Eu sempre
estive aqui". "Eu me importo". "Eu cuido". "Eu sou".
Procurei fotos do caminhinho de lavandas mas não encontrei.
Essas fotos são do jardim novo. Olha bem pra elas. Agora me responde:
Quem tem falta do jardim antigo? Rá! Eu que não!